☆ O Crepúsculo dos Pagodeiros ☆

pagode

por Renan Santos

Eu sou brasileiro e nunca gostei de pagode. Nunca fui afeito, também, a demonstrações exageradas de sentimentalismo barato – ainda que incentivado, desde pequeno, pelos meios de comunicação e por parentes e amigos imersos na tal “brasilidade”. Tampouco sei exatamente quando convencionou-se que deveríamos ser uma turba de “Zés Cariocas” sorridentes e malandros, histericamente passionais e orgulhosamente alienados. O que sei, apenas, é que não me encaixo nesse desajuste civilizacional que ignora seus 60.000 homicídios/ano enquanto afirma sua nacionalidade com “muito orgulho e muito amor“.

Não vou, porém, converter este texto numa tese antropológica. Estou aqui para falar de pagodeiros e – mais que isso – de uma mentalidade pagodeira que nos rodeia país afora. Nada escapa de seus tentáculos melosos e de sua malemolência pueril. Tal qual um Che Guevara do pandeiro, rompe classes sociais e barreiras étnicas e geográficas, passando massa corrida sobre nossa irregular superfície cultural. Abrange, inclusive, outros gêneros musicais. Regina Casé e seu programa de TV estão aí para nos provar isso. Enfim, sabemos da dimensão de sua influência quando não precisamos descrever as qualidades do fenômeno. Você, que lê esse texto, sabe exatamente do que estou falando.

Da conversão forçada do samba em música nacional ( jamais teve a abrangência territorial da música sertaneja, por exemplo) , até o abandono de seus arquétipos tradicionais ( o malandro do morro, por exemplo), mais de 80 anos se passaram. Hoje, afirmamos nossa brasilidade nas figuras dos meninos sorridentes e alegres, saudavelmente ignorantes, implacavelmente beijoqueiros e forçosamente espontâneos. Bradamos esta “ousadia e alegria” enquanto oposição aos sisudos “cinturas-duras” do mundo desenvolvido – aquela gente chata e cinza que insiste em ganhar dinheiro e ostentar um IDH superior. Esquecemos-nos porém, que não somos os únicos a fazer isso. É recorrente por parte de povos dominados e subdesenvolvidos ostentar sua suposta criatividade superior (jamais confirmada na forma de patentes industriais ou obras primas da arte ) , sua hospitalidade, espontaneidade, sensualidade e por aí afora. “Viver bem” e “ser feliz” é o prêmio de consolação que resta aos perdedores – ainda que desviando de alguns cadáveres aqui e acolá.

A Seleção Brasileira de Futebol, em especial após sua consagração a partir de 1958, condensou esse sentimento confuso de brasilidade ao demonstrar, nestas pequenas simulações de guerra, que de alguma forma podíamos subjugar a potência estrangeira – seja ela o arrogante argentino ou o sisudo alemão – através de nossas características “fundamentais” , como a alegria, a malandragem e a “ginga”. E não apenas o brasileiro comprou essa história: o mundo todo também o fez. O país do “jogo bonito” encontrou no futebol a materialização de sua cultura. Futebolistas viram heróis, cronistas esportivos viraram poetas. A civilização brasileira tinha em Pelé seu Aquiles, e em Nelson Rodrigues seu Homero. De 4 em 4 anos provaríamos nosso valor e encantaríamos o mundo com a expressão máxima de nossa nacionalidade. A pátria de chuteiras cumpriria seu destino manifesto e faria do mundo um lugar sorridente. Eis a escatologia brasiliana.

Desta forma, enquanto projeção do espírito brasileiro, a seleção canarinho refletiu diversos momentos históricos do país, que vão do ufanismo à desilusão. O mais marcante, talvez, em 1994, quando, ao passo que o país tomava uma decisão madura em prol de um plano econômico que primava pela austeridade e responsabilidade (Plano Real), a seleção brasileira fazia o mesmo ao adotar o pragmatismo de Dunga e Mauro Silva para sair de uma amarga fila de 24 anos. Decisões maduras e difíceis tomadas por homens, e não meninos. Ao mesmo tempo, é possível traçar paralelo similar entre as seleções brasileiras da última década e a euforia populista da era Lula/Dilma. Nosso suposto “ingresso no mundo desenvolvido” se daria através de um modelo “genuínamente nacional” , e nossos vícios tradicionais como a malandragem e o “jeitinho” eram exaltados como virtudes. Eram tempos de Lula presidente e seleção chinelinho de Weggis, 2006. Dane-se a disciplina, nossos talentos (e comodities) sempre resolvem no final. Ou não…

A fugaz tentativa de “botar ordem na casa” com Dunga como técnico se mostrou, em 2010, ineficaz. Não há disciplina que cure a cada vez mais incensada alma pagodeira de nossos jogadores. Dunga quis converter os “meninos sorridentes e batucadores” , das selfies com biquinho e corações para a câmera , em guerreiros implacáveis, e recebeu de volta um vareio da Holanda de Robben e Snejder. Culpou-se o treinador pelo fracasso na África do Sul, e o apelo por mais “alegria e ousadia” era constante. Muita disciplina e pouco pagode, os males do país são!

A seleção brasileira de 2014, composta por sorridentes mocinhos sem fibra moral, caiu sem dignidade alguma diante de uma forte , organizada e (ressalte-se) alegre Alemanha. O fracasso da “missão histórica” do alegre brasileiro – construção de sociólogos, historiadores, marqueteiros e vacas-sagradas da cultura nacional- encontra eco tanto no fiasco do clepto-desenvolvimentismo petista, escancarado na crise econômica e institucional que vivemos, quanto na seleção brasileira, em que nossos 23 pueris batucadores foram demolidos pela realidade de um futebol mais desenvolvido e pela pressão de se vencer em casa.

A vida não é feita de sorrisos, e o grupo Molejo não é feito de poetas. A realidade é ainda cruel para nós brasileiros. Nossa carga de impostos é absurda, nossa bandidagem faz inveja ao Hezbollah e somos um país essencialmente pobre. Até quando ficaremos sorrindo? Em recente pesquisa, o Movimento Renova Vinhedo descobriu que boa parte da população local atribui notas ALTAS a escolas públicas cujo desempenho no ENEM é vergonhoso. Justificavam que os professores e funcionários eram “gente boa”. Até quando a cordialidade vai se sobrepor ao desempenho?

Eu não torci pra essa seleção de pagodeiros. Eu não gosto de nenhum deles. Devem ser bons rapazes, mas não possuía razão alguma para apoiá-los. Para eles, sorrir tornou-se uma expressão estética isolada, um fim em si mesmo. Sua celebração era celebrada pela mídia, num patético esforço ufanista para que celebremos nossa própria celebração. Prefiro achar que isso é loucura.

Eu torço pra gente que trabalha sério, gente ranzinza, gente inconformada. Não quero viver num país de mentalidade pagodeira. Não tenho razões para sorrir enquanto perdemos sucessivas janelas históricas para o progresso econômico e social. A construção de um país desenvolvido ocorre através de um longo processo histórico onde a liberdade econômica e uma cultura de trabalho e austeridade são valores fundamentais. Nossos verdadeiros craques trabalham arduamente e pagam impostos absolutamente extorsivos, com ou sem sorriso na cara. Em um governo que os trata como inimigos e uma cultura que celebra valores opostos, essa gente perde de goleada todos os dias.

A realidade é muito mais complexa do que os esquemas táticos do Felipão. Em um mercado global e competitivo, somos acossados constantemente pela concorrência com milhares de Müllers e Schweisteigers – na forma de empresas e indivíduos mais aptos e preparados . E estamos perdendo, novamente, de lavada para os “cinturas-duras”. Ao ignorarmos os verdadeiros desafios que se impõe sobre nós,  ficamos a mercê de nossas emoções e de conceitos errôneos acerca do que é vencer no mundo contemporâneo. Conforme já dito, o marketing eleitoral governista da última década caiu por terra. É hora de encarar nossas deficiências de frente, com mais cérebro e menos coração.

Que o fiasco da seleção brasileira – e a derrota do PT no pleito de outubro – sirvam para representar senão o  fim, ao menos o outono desta mentalidade pagodeira que assola o país. Que deixemos nossa arrogância de lado e reconheçamos nossas profundas deficiências. Que aprendamos , com países como a Alemanha, como se valorizar aqueles que trabalham de forma  séria e comprometida – diferentemente da  histeria coletiva e do oba-oba de “paizões” como Lula, Vargas e Scolari. Temos ainda muito pouco a ensinar para o mundo. Resguardávamos ainda nossa supremacia em termos de futebol e de “alegria”. Hoje nem isso. Se nos estádios  passamos por  uma visível decadência técnica, nos corações somos ainda mais tolos e infantis. Alegria, felicidade e amor podem ser expressos de forma mais bela e menos óbvia do que em uma canção do Thiaguinho.

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